segunda-feira, 3 de setembro de 2018

O vermelho barro da Balaiada

Em algum lugar no Baixo Parnaíba maranhense



O Viajante estava mais ou menos entre São Benedito do Rio Preto e Chapadinha – há algumas alturas das matas de cocais daquelas comunidades quilombolas, antes de chegar ao lugarejo Placa. A caminhonete roncava ultrapassando a neblina que acinzentava a estrada – eram seis da manhã; acordara cedo para mais uma missão por esse Baixo Parnaíba. Quando se atravessava a ponte do Rio Munim, começava a aparecer os arvoredos tortos, as carnaubeiras e muricis do cerrado. Era aquele lugar – exatamente por onde os “Balaios” passaram há cento e oitenta anos atrás, vindos da Manga do Iguará.
“Barro Vermelho” também é o nome de uma Comunidade Quilombola que fica sob as margens do Munim – “Terra de pretos” que ainda hoje lutam pela regularização fundiária da terra. Muito antes disso, o Viajante fizera muitos amigos por aquelas bandas de Barro Vermelho e São Domingos – povoados próximos. Os irmãos negros de Barro Vermelho sempre participam de atividades de direitos humanos: seminários, encontros, intercâmbios e cursos de formação de base, daí facilitou a comunicação entre os militantes sociais. Pois não haveria motivos de deixar de visitar os velhos amigos companheiros de armas e batalhas. Houve outros tempos de glórias que lutamos lado a lado em busca de um objetivo comum. O Viajante aguardava um dedo de prosa; enquanto proseava esperava para almoçar “capote ao leite de coco”. A panela fervia e fazia um barulho na tampa, o cheiro era incrível e o sabor nem se fala. Os anfitriões relembraram um passado distante dos ancestrais que lutaram pela terra, os “pretos guerreiros de combate que não temiam a ninguém” – confiantes no gingado da capoeira e no papoco da lazarina. Mais tarde surgia a “Associação de moradores”, para o enfrentamento de novos avalanches e entraves. As horas de passaram rapidamente num piscar de olhos – a barriga roncava, pois a fome devorava o instinto. O capote apurado no coco foi servido acompanhado de arroz seco pisado no pilão; uma puba completava a farofa do guisado com pimenta. Depois do almoço cochilava-se na rede de linho de buriti que ficava na varanda da simples e humilde casa de taipa. Só se ouvia o canto da cigarra – uma calmaria e nada mais. O Viajante recompôs as energias e se despedia dos amigos quilombolas, rumava para outro quilombo, o “Lagoa Amarela” do saudoso Negro Cosme Bento das Chagas. O esconderijo se formara nas cabeceiras do Rio Preto – (Chapadinha), muito longe dali; antigos caminhos e trilhas dos Balaios facilitava o sistema de comunicação entre os vilarejos. Após várias horas cortando estradas pelas chapadas, entrava nos portões da vila quilombola de Lagoa Amarela. O relógio contava quatro da tarde. Infelizmente as pessoas que o Viajante conhecia não estavam em casa; aguardava um pouco passeando pelo centro do quilombo. Não fora reconhecido devido ao tempo que não pisava por ali; o Baixo Parnaíba é grande e as tarefas de militante não tem sido fácil. Escureceu e os donos da casa apareceram – a mulher com seus filhos estavam pescando e o homem caçando. Admiraram-se em vê-lo, abraçaram o velho amigo e pediram para entrar na casa. Passaria a noite? Gostaria, talvez. Mas não podia por causa de muitas outras tarefas e compromissos no dia seguinte. O jantar foi preparado com carinho – peixe do rio com pirão de farinha seca. A conversa antes do jantar sobre a luz de lamparina era dirigida a terra e os projetos sociais da comunidade. Poucas mudanças em quase duas décadas. Jantava e se despedia dos amigos e já era nove da noite. Partia em direção a Urbano Santos – pelas estradas rudimentares, imaginaria como era a comunicação dos Balaios numa época sem tecnologia; faziam esses trajetos a cavalo e até a pé. Demarcavam territórios através de rios, riachos, capões de mato e clareiras; viviam da selva, da arte de caçar e dos frutos da terra. Pulavam barreiras, atacavam e se esquivavam quando necessário.
O viajante voltava para casa – chegando pela madrugada. Refletia sobre a história desse território no universo fictício que construíra no pensamento através de vivencia na íntegra.

José Antonio Basto                                                                    
Chapadinha-MA, 20/07/2018.



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