quinta-feira, 16 de julho de 2020

Batuque do pilão em Santa Rosa

Quando se anda pelas chapadas se ouve muitos sons: pássaros, cigarras, insetos, cantos de galos, gritos de caçadores, latidos de cachorros acuados e tiros de espingarda. O Viajante solitário adentrava as chapadas e cerrados ao nível do Rio dos Pretos, com o intuito de visitar alguns velhos amigos que por ali deixara. As chuvas densas tem castigado os caminhos daqueles vilarejos, esbarrocando e deixando marcas. Sem muito compromisso, a viagem a cada momento se tornava interessante, primeiro pelo fato da ideia de ter um dedo de prosa com os amigos camponeses sobre a questão da terra – polêmica terra; depois para matar a saudade de andar por as matas sentindo o cheiro do chão e da natureza em busca de novas aventuras. A motocicleta atolava a cada obstáculo de lama, para complicar a situação levantava para o nascente as nuvens carregadas que prometiam um grande temporal desses de fevereiro. As chuvas dessa época não respeitam e nem aguardam por ninguém, ela desaba do céu sem muita piedade e quem estiver debaixo que se cuide. Então a santa água caiu com gosto e com força. O Viajante se encostara a um pé de bacuri para se proteger daquele temporal repleto de relâmpagos e trovoadas. Já era tardinha, por volta das cinco horas ou mais. A chuva foi passando e o tempo como se diz, limpando. Pensava-se de voltar, mas não desistira da viagem, ligava a moto e acelerou; uma zuada! A nambu de pé "encarnado" cantava à beira do caminho; os gritos de camponeses chamando uns aos outros ecoavam, desciam de suas roças e seguiam para suas casas. As estradas dos vilarejos do Baixo Parnaíba se modificam pela ação do agronegócio. Por isso para quem as não conhecem fica muito fácil se perder pelos caminhos aplainados da Suzano. Uma ladeira de pedra dava acesso ao "Riacho Santa Rosa" que mais em seguida descia no pequeno povoado. O Viajante se aproximava devagar por uma ladeira de pedra, pois em áreas de conflitos se deve ter cuidado quando se chega. O pilão roncava com suas batidas fortes tirando a palha do arroz, batida de pilão é coisa antiga – e bota antiga nisso. Dona Maria e Zé Souza - donos da casa, davam as boas vindas ao amigo de lutas e convidava-o para jantar um capote ao leite de coco, que coisa boa e, ainda mais com o arroz natural da roça sucado no momento. Como recusar um convite desses. O Viajante ficava por ali mesmo, antes de seguir para as outras bandas da Comunidade Porção subindo as cabeceiras do Rio dos Pretos rumo ao "Quilombo de Lagoa Amarela", quartel general do Negro Cosme do tempo da Balaiada.

José Antonio Basto

quarta-feira, 8 de julho de 2020

A panela preta

Na hora da foto ela ficara com vergonha de sua famosa "panela preta" ser vista por outras pessoas, além da gente que é acostumada em sua casa. E ainda mais, quando se trata de postagens na internet que mais tarde pode virar domínio público. Explicava então que tomaria todos os cuidados necessários caso permitisse a publicação do texto e da imagem da panela, pois muita gente gosta de ler e apreciar as tradições e coisas da roça. Mas ela não sabia da importância de se possuir uma [panela preta] daquelas que tem seus mais de meio século de existência, pertencera sua avó, depois seus pais, ultrapassara as barreiras do tempo até a terceira geração. Panela de ferro no fogo de lenha, o tempo lhe deixara preta pelo excesso de fumaça das "trempes de pedras" - (três grandes pedras que servem de fogão). Pensara-se numa prosa, quando o Viajante voltasse de seu ofício. Há dias não caminhara por aquelas bandas. Resolveu então mudar o trajeto da viagem, saíra do leste e fora para o oeste. Regiões diferentes pelo clima e pelas vistas, matas e florestas... lagoas e alagadiços... opostos, com situações socioambientais incomuns. O objetivo da escrita não era aquele, os desafios fazem parte da vida humana desde a criação do homem; mas as vezes é preciso falar de novas esperanças para um mundo novo - mesmo que esse pensamento seja utópico ou venha cair num romantismo. A prosa se ensaia em direção às vivências dos povos tradicionais, sua cultura e tradições que alimentam a vida, seus problemas agrários, as belezas naturais numa dose de poetização sociocultural e socioambiental. O Viajante abancara ali naquela moradia, seus anfitriões o convidara para degustar um prato de "quibebe de abobora", feito na velha panela de ferro. [Quibebe é um prato de origem africana, típico da culinária brasileira preparado principalmente nos quilombos rurais e comunidades tradicionais da Região Nordeste. É um purê de abóbora que acompanha, geralmente, carne, frango, camarão ou peixe. A palavra "quibebe" é um termo originário da língua (“quimbundo kibêbe” -, que significa angu ou massa de tubérculos, mandioca, abóbora, batata...etc...). Esta língua ainda é falada em algumas regiões da África Oriental. Chegou ao Brasil com os negros que foram escravizados. Um dedo de prosa! Enquanto os pratos esfriavam na mesa. Falava-se nas roças de verão, na produção e preços da farinha de puba que teve suas elevações pelos fenômenos anteriores. A hora era chegada, ouvia-se o chamado, a carne e o peixe seco estavam na brasa... chiando... acompanhariam o quibebe, o cheiro era bom. Cedo da manhã, uma dose de energia certa após uma "pratada"- de mingau de abóbora com leite de coco babaçu e carne assada. Lembrava-se dos tempos antigos quando tudo era diferente nas comunidades rurais do interior; quando os mais velhos se alimentavam bem com produtos naturais e orgânicos; viviam longo tempo porque sabiam disso. Alguns modos de vida foram caindo no esquecimento ao longo das décadas, infelizmente, uma perda para a cultura. Deve-se manter o que ainda restou. E a panela preta? Uma foto apenas com o purê de abóbora que estava ao fundo. Ela não sabia da repercussão e valorização dos que visualizaram a imagem da panela e do quibebe! A famosa panela que também torra café de coco, esquenta a água para pelar leitão, cozinha peixe ao leite de coco e arroz na palha de banana. Incrível suas utilidades... orgulho de sua dona. Após a merenda extraordinária o Viajante seguira rumo aos campos arenosos em busca de novas aventuras e conteúdos para seus pedaços de prosa. Ele voltaria para mostrar aquela Senhora a curta, simples e modesta matéria, fruto do seu talento e manutenção dos modos de vida dos povos que moram, trabalham e vivem nas comunidades tradicionais.

José Antonio Basto