"O Viajante do Leste" voltava de uma longa jornada fora
do mapa deste velho e histórico sertão, o andarilho sertanista viajara para a capital do país –
Brasília-DF. Estava numa tarefa de estudo sobre conflitos agrários na região do
MATOPIBA; ele aprendera algumas coisas e trazia consigo uma bagagem para
compartilhar com sua gente. Trazia conhecimentos e presentes também... os
melhores presentes em sua mala, trazia livros! Depois de algum tempo ausente do
seu chão de vida, voltou para ver seus amigos do interior, para sentir o barro
e a areia quente das chapadas no solado dos pés. Ao desembarcar do ônibus, não
demorou muito na cidade, seguindo caminho para os lados do norte, por ser
ironicamente do leste. Ele pegou uma carona numa carroça do camponês que estava
indo para sua roça, viu estradas aplainadas, algumas coisas bem diferentes da
última vez que passara por ali, muitos problemas causados pelo agronegócio,
(viu pobreza das comunidades e riqueza do capitalismo empresarial). O sol
ardente e sufocante, as doze horas em ponto. Para o rumo que indicava os
lençóis e o Oceano Atlântico - umas nuvens carregadas de chuva anunciavam um
futuro “sereno”. Já era o mês de junho, mas as chuvas precoces ainda desciam temporariamente
e ainda caem. Roças de arroz, milho e mandioca apareciam a cada instante. Mas o
arroz desta safra quase não encheu, nasceu bem... a falta de chuva no tempo
certo fez com que os cachos não enchessem. O milho até que rendeu - é no que se
parece ao olhar ainda umas espigas secas, mas com boa aparência de uma boa
colheita que se passara. Depois de umas horas o Viajante avistara o primeiro
vilarejo, casas de taipas e animais pastando nós terreiros. Acenava para os
moradores e os sertanejos respondiam com um modesto "boa tarde"
companheiro! A geografia da comunidade rural se parecia com uma aldeia
indígena: um campo de futebol no meio, nos arredores as casas sob as sombras de
jatobazeiros centenários. "Próximo o Rio dos Pretos", e logo perto o
cerrado verde e exuberante. Parava ali para prosear. A Carona do carroceiro se
foi. A fome apertava e um velho amigo morador daquele povoado lhe convidara
para almoçar um "peba na pimenta", como aquele da música de João do
Vale. Ele aceitou o convite. O velho sentado no tamborete de buriti (espécie de
banco), conversava enquanto o peba fervia na panela. O coco babaçu estava sendo
socado no pilão para que o leite fosse adicionado na carne da caça. O anfitrião
contava história e o Viajante ouvia-o com muita atenção. Dizia que a terra onde
mora e trabalha vem sendo vítima de grilagem, por isso se preocupava. Pois
tinha uma "reca de menino" - numa faixa de uns doze, todos nascidos e
criados naquele lugar. Contara que vive e trabalha numa área que ainda não lhe
pertence por lei, mas por cultura e tradições que se perpetuam há décadas...
desde a geração de seu pai. A terra é de uma fazenda e o fazendeiro ameaça-lhe
botar pra fora sem de direito de indenização. Ele não quer dinheiro, quer apenas
das mais de mil hectares - as suas trinta ou quarenta hectares, assim pode
viver sossegado com sua coroa, com o espírito de dever cumprido para a herança
dos descendentes. Contou muitas histórias, uma hora se passou e a narração
continuara. De repente um chamado do mulher para o almoço. O peba estava pronto
com leite de coco e arroz seco. Uma esteira de palha foi espalhada no chão da
cozinha, ao redor, uma fileira contornada de pratos e a panela de carne,
meninos e velhos se aconchegavam para se servir. Mais parecia um ritual. Antes
de começar servir, uma oração em agradecimento por aquele alimento que a
floresta presenteou a família campesina. O Viajante acompanhou
a cerimonia. Então o rango foi liberado para ser degustado. Depois da
panelada de peba cozido. O Viajante descansou um pouco na rede de linho de embira
de tucum. Já era quase cinco horas da tarde, pensava em ficar pra um descanso
mais aprofundado. Mas tinha que seguir em sua missão. Despediu-se e agradeceu a
todos, levaria as reivindicações aos advogados de defesa da causa – dos “Direitos
Humanos”, em relação à sua terra. Anotou todas as falas. Seguiu adiante, na
travessia da ponte sobre o rio. O Viajante se deparou com as praias do rio e
tomou como caminho uma vereda que tinha contornando a margem direita do
igarapé. Anoiteceu! Então ali acampou. Um sobrevivente! Não tinha fósforo, nem
isqueiro, foi preciso utilizar suas técnicas e experiências de caçador/ coletor/
sobrevivente primitivo para acender uma fogueira através de atrito entre dois
pedaços de madeira. Sendo essa uma das técnicas mais difíceis de se
conseguir fogo e ainda mais com o combustível encharcado da chuva. A noite não era
de lua. O Viajante fez fogo com atrito mas nada tinha pra assar. O abrigo
ficava num local de areia em baixo de pés de muricizeiros. Decidiu fabricar uma
armadilha para pegar peixes: um cesto de talas de palhas de palmeiras, usou
suas habilidades para construir e a coragem para tirar cupins e botar n' água.
Passou ali algumas poucas horas para checar a armadilha. Entrou na água
escura... tinha piabas, assou-as na brasa e assim conseguiu energia para
dormir. Acordou com sons de tiros de caçadores noturnos, latidos de cachorros
ao longe, era exatamente quatro horas da manhã, não conseguiu mais dormir
naquela madrugada. Alimentou a fogueira até os primeiros raios do dia aparecer
no nascente. As cinco e meia já o dia claro jogou água na fogueira, pegou seu
surrão, bateu a terra e seguiu pelo nível do rio. Depois de horas de caminhada
ouviu som de pilões por traz dos morros da floresta. Era os moradores
remanescentes do quilombo de Lagoa Amarela. Comunidade essa que no passado foi
o quartel general do irmão Cosme Bento das Chagas, o (Negro Cosme da Balaiada).
Que corajosamente arregimentou negros escravizados na luta pela liberdade tendo
como base a insurreição dos Balaios (1838-1841). Cosme Bento das Chagas, como
chefe negro, expressou o seu grau de consciência política e o valor que dava à
liberdade, quando procurou estabelecer uma escola de ler e escrever no famoso Quilombo
de Lagoa-Amarela - localizado na cabeceira do Rio dos Pretos, na
época comarca do Brejo, hoje município de Chapadinha. A história do Cosme
foi contada de cima pra baixo pela elite herdeira da estrutura agrário neste
sertão. Agora estar sendo contada e escrita de baixo pra cima por um militante
Balaio de hoje. O Viajante refletiu sobre tudo aquilo que sua gente
passara, correndo, se escondendo, lutando, fugindo... Sonhando. Ele atravessou
o quilombo, não se hospedou, mas conversou com amigos e nas conversas eles
sempre tocavam na questão da terra que nunca foi resolvida há séculos, mesmo as
tais leis sendo regidas pela Constituição de 1988. Pediu água, bebeu e encheu a
cabaça a tira colo, meio dia estava quase chegando... quase dois dias de
caminhada. Um som tribal ecoava nos ouvidos: era um menino afinando um berimbau
e outro esquentando um atabaque na fogueira. Naquela tarde ia ter roda de
capoeira no quilombo, mal podia esperar... a vontade foi muita de participar e
bater umas, responder couros de ladainhas e quem sabe dar umas pernadas no ar.
Mas o tempo era curto e precisava chegar com dia no próximo povoado. E assim
sumiu no estirão do caminho, atravessando uma ponte de buriti para outro
território. Fazia voltas e voltas, chegou em “Bebedouro dos Calixtos” do outro
lado do rio, conversou com lideranças dali. Um dedo de prosa com a senhora que
estava varrendo a capela, tinha missa naquela noite. Pegou outros caminhos
praticando as veredas que chegaria a velha estrada do Surrão - de povoado em
povoado, parou já no final da tarde no quilombo de Santa Maria. Ele jantou na
casa do velho morador, o mais antigo do quilombo -, um ancião que sabia quase
de tudo sobre a história do seu lugarejo. O Viajante já tinha escrito alguns
artigos sobre Santa Maria, era familiar sua história. O velho trabalhador rural
já tinha sido personagem de seus escritos. Não demorou muito por lá. Se deparou
com a Comunidade Fortaleza e por fim chegou na sede da cidade de Urbano Santos
na casa de seus pais. Seus pais há tempos não lhe via. Jantou a melhor refeição
do mundo, comida da casa de mamãe. Dormia sossegado, aquela noite era
demorada, estava com a família, depois de muito tempo ausente. Matava a saudade
dos irmãos (as) mais novos e do carinho dos pais. Mas no dia seguinte, tomou
café, pediu a bênção dos pais e abraçou os irmãos e seguiu rumando por as
estradas praieiras das velhas linhas e trilhas em direção à Miritiba, Morros e
Icatu - por onde os Balaios deixaram seus rastros.
José Antonio Basto
Junho - 2021.
A saga do Viajante do Leste - parte II
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