segunda-feira, 5 de julho de 2021

Aventuras do andarilho sertanejo Viajante do Leste – Parte II




"O Viajante do Leste" voltava de uma longa jornada fora do mapa deste velho e histórico sertão, o andarilho sertanista viajara para a capital do país – Brasília-DF. Estava numa tarefa de estudo sobre conflitos agrários na região do MATOPIBA; ele aprendera algumas coisas e trazia consigo uma bagagem para compartilhar com sua gente. Trazia conhecimentos e presentes também... os melhores presentes em sua mala, trazia livros! Depois de algum tempo ausente do seu chão de vida, voltou para ver seus amigos do interior, para sentir o barro e a areia quente das chapadas no solado dos pés. Ao desembarcar do ônibus, não demorou muito na cidade, seguindo caminho para os lados do norte, por ser ironicamente do leste. Ele pegou uma carona numa carroça do camponês que estava indo para sua roça, viu estradas aplainadas, algumas coisas bem diferentes da última vez que passara por ali, muitos problemas causados pelo agronegócio, (viu pobreza das comunidades e riqueza do capitalismo empresarial). O sol ardente e sufocante, as doze horas em ponto. Para o rumo que indicava os lençóis e o Oceano Atlântico - umas nuvens carregadas de chuva anunciavam um futuro “sereno”. Já era o mês de junho, mas as chuvas precoces ainda desciam temporariamente e ainda caem. Roças de arroz, milho e mandioca apareciam a cada instante. Mas o arroz desta safra quase não encheu, nasceu bem... a falta de chuva no tempo certo fez com que os cachos não enchessem. O milho até que rendeu - é no que se parece ao olhar ainda umas espigas secas, mas com boa aparência de uma boa colheita que se passara. Depois de umas horas o Viajante avistara o primeiro vilarejo, casas de taipas e animais pastando nós terreiros. Acenava para os moradores e os sertanejos respondiam com um modesto "boa tarde" companheiro! A geografia da comunidade rural se parecia com uma aldeia indígena: um campo de futebol no meio, nos arredores as casas sob as sombras de jatobazeiros centenários. "Próximo o Rio dos Pretos", e logo perto o cerrado verde e exuberante. Parava ali para prosear. A Carona do carroceiro se foi. A fome apertava e um velho amigo morador daquele povoado lhe convidara para almoçar um "peba na pimenta", como aquele da música de João do Vale. Ele aceitou o convite. O velho sentado no tamborete de buriti (espécie de banco), conversava enquanto o peba fervia na panela. O coco babaçu estava sendo socado no pilão para que o leite fosse adicionado na carne da caça. O anfitrião contava história e o Viajante ouvia-o com muita atenção. Dizia que a terra onde mora e trabalha vem sendo vítima de grilagem, por isso se preocupava. Pois tinha uma "reca de menino" - numa faixa de uns doze, todos nascidos e criados naquele lugar. Contara que vive e trabalha numa área que ainda não lhe pertence por lei, mas por cultura e tradições que se perpetuam há décadas... desde a geração de seu pai. A terra é de uma fazenda e o fazendeiro ameaça-lhe botar pra fora sem de direito de indenização. Ele não quer dinheiro, quer apenas das mais de mil hectares - as suas trinta ou quarenta hectares, assim pode viver sossegado com sua coroa, com o espírito de dever cumprido para a herança dos descendentes. Contou muitas histórias, uma hora se passou e a narração continuara. De repente um chamado do mulher para o almoço. O peba estava pronto com leite de coco e arroz seco. Uma esteira de palha foi espalhada no chão da cozinha, ao redor, uma fileira contornada de pratos e a panela de carne, meninos e velhos se aconchegavam para se servir. Mais parecia um ritual. Antes de começar servir, uma oração em agradecimento por aquele alimento que a floresta presenteou a família campesina. O Viajante acompanhou a cerimonia. Então o rango foi liberado para ser degustado. Depois da panelada de peba cozido. O Viajante descansou um pouco na rede de linho de embira de tucum. Já era quase cinco horas da tarde, pensava em ficar pra um descanso mais aprofundado. Mas tinha que seguir em sua missão. Despediu-se e agradeceu a todos, levaria as reivindicações aos advogados de defesa da causa – dos “Direitos Humanos”, em relação à sua terra. Anotou todas as falas. Seguiu adiante, na travessia da ponte sobre o rio. O Viajante se deparou com as praias do rio e tomou como caminho uma vereda que tinha contornando a margem direita do igarapé. Anoiteceu! Então ali acampou. Um sobrevivente! Não tinha fósforo, nem isqueiro, foi preciso utilizar suas técnicas e experiências de caçador/ coletor/ sobrevivente primitivo para acender uma fogueira através de atrito entre dois pedaços de madeira. Sendo essa uma das técnicas mais difíceis de se conseguir fogo e ainda mais com o combustível encharcado da chuva. A noite não era de lua. O Viajante fez fogo com atrito mas nada tinha pra assar. O abrigo ficava num local de areia em baixo de pés de muricizeiros. Decidiu fabricar uma armadilha para pegar peixes: um cesto de talas de palhas de palmeiras, usou suas habilidades para construir e a coragem para tirar cupins e botar n' água. Passou ali algumas poucas horas para checar a armadilha. Entrou na água escura... tinha piabas, assou-as na brasa e assim conseguiu energia para dormir. Acordou com sons de tiros de caçadores noturnos, latidos de cachorros ao longe, era exatamente quatro horas da manhã, não conseguiu mais dormir naquela madrugada. Alimentou a fogueira até os primeiros raios do dia aparecer no nascente. As cinco e meia já o dia claro jogou água na fogueira, pegou seu surrão, bateu a terra e seguiu pelo nível do rio. Depois de horas de caminhada ouviu som de pilões por traz dos morros da floresta. Era os moradores remanescentes do quilombo de Lagoa Amarela. Comunidade essa que no passado foi o quartel general do irmão Cosme Bento das Chagas, o (Negro Cosme da Balaiada). Que corajosamente arregimentou negros escravizados na luta pela liberdade tendo como base a insurreição dos Balaios (1838-1841). Cosme Bento das Chagas, como chefe negro, expressou o seu grau de consciência política e o valor que dava à liberdade, quando procurou estabelecer uma escola de ler e escrever no famoso Quilombo de Lagoa-Amarela - localizado na cabeceira do Rio dos Pretos, na época comarca do Brejo, hoje município de Chapadinha. A história do Cosme foi contada de cima pra baixo pela elite herdeira da estrutura agrário neste sertão. Agora estar sendo contada e escrita de baixo pra cima por um militante Balaio de hoje. O Viajante refletiu sobre tudo  aquilo que sua gente passara, correndo, se escondendo, lutando, fugindo... Sonhando. Ele atravessou o quilombo, não se hospedou, mas conversou com amigos e nas conversas eles sempre tocavam na questão da terra que nunca foi resolvida há séculos, mesmo as tais leis sendo regidas pela Constituição de 1988. Pediu água, bebeu e encheu a cabaça a tira colo, meio dia estava quase chegando... quase dois dias de caminhada. Um som tribal ecoava nos ouvidos: era um menino afinando um berimbau e outro esquentando um atabaque na fogueira. Naquela tarde ia ter roda de capoeira no quilombo, mal podia esperar... a vontade foi muita de participar e bater umas, responder couros de ladainhas e quem sabe dar umas pernadas no ar. Mas o tempo era curto e precisava chegar com dia no próximo povoado. E assim sumiu no estirão do caminho, atravessando uma ponte de buriti para outro território. Fazia voltas e voltas, chegou em “Bebedouro dos Calixtos” do outro lado do rio, conversou com lideranças dali. Um dedo de prosa com a senhora que estava varrendo a capela, tinha missa naquela noite. Pegou outros caminhos praticando as veredas que chegaria a velha estrada do Surrão - de povoado em povoado, parou já no final da tarde no quilombo de Santa Maria. Ele jantou na casa do velho morador, o mais antigo do quilombo -, um ancião que sabia quase de tudo sobre a história do seu lugarejo. O Viajante já tinha escrito alguns artigos sobre Santa Maria, era familiar sua história. O velho trabalhador rural já tinha sido personagem de seus escritos. Não demorou muito por lá. Se deparou com a Comunidade Fortaleza e por fim chegou na sede da cidade de Urbano Santos na casa de seus pais. Seus pais há tempos não lhe via. Jantou a melhor refeição do mundo, comida da casa de mamãe.  Dormia sossegado, aquela noite era demorada, estava com a família, depois de muito tempo ausente. Matava a saudade dos irmãos (as) mais novos e do carinho dos pais. Mas no dia seguinte, tomou café, pediu a bênção dos pais e abraçou os irmãos e seguiu rumando por as estradas praieiras das velhas linhas e trilhas em direção à Miritiba, Morros e Icatu - por onde os Balaios deixaram seus rastros.

José Antonio Basto
Junho - 2021.
A saga do Viajante do Leste - parte II

 

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